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Sabina Spielrein: Fundadora Esquecida da Psicanálise


Ao ler a história de Sabina Spielrein relatada pela psicanalista Renata Cromberg (1), podemos usar a metáfora de que esse nome, Sabina Spielrein (1885–1942), foi tirado de dentro de um baú. Grande parte da sua história foi encontrada e casualmente restaurada nos idos de 1970. Essa história estava nos porões da Faculdade de Psicologia Palais Wilson, em Genebra. Esse acervo continha cartas, relatórios médicos e a transmissão de fatos envolvendo as relações de Jung, Sabina e Freud — o chamado “Dossiê Spielrein”.

O que teria acontecido para que o nome Spielrein fosse conhecido na psicanálise tão somente por uma breve nota de rodapé em Além do Princípio do Prazer? Nessa nota, Freud afirma ter sido ela a primeira a formular o conceito de pulsão de morte.

Quem é ela? Uma pequena apresentação, como fazemos quando chamamos alguém para dar uma palestra:

“moça russa e judia: ela se tornou médica no início de um século que estava apenas começando a legitimar a cidadania feminina; falava várias línguas; dedicou-se à música como compositora; foi a segunda mulher a consolidar a peste psicanalítica em tempos de revolução comunista, pioneira em juntar psicanálise e educação, psicanálise e a incipiente linguística; na sua viagem de volta à pátria-mãe, participou também da emergência da psicanálise institucionalizada na nação soviética e da posterior proibição e desaparecimento da psicanálise no massacre stalinista que dizimou sua família. Morreu fuzilada pelos nazistas, junto com suas duas filhas, num dia comum – numa vala nos arredores de sua cidade natal”(2).

Em uma consulta ao Psychoanalytic Eletronic Publishing[1], uma organização, com o objetivo de indexar a história da produção teórica da psicanálise, encontrei 29 produções de autoria de Spielrein. A documentação de Cromberg (3) aponta 31. Eu sumarizei essas 29 como a seguir:

Periódico (original / tradução)

Nacionalidade

Circulação

Origem e perfil (status)

Nº de artigos

American Imago / Imagem Americana

USA

Anglófono

Fundado em 1939 por Ernst Kris e Marie Jahoda; dedica-se a psicanálise e cultura; ainda em circulação

1

Imago / Imagem

AU

Global

Estabelecido em 1910 pela Imago Association; aborda psicologia analítica; ativo globalmente

6

International Journal of Psychoanalysis / Revista Internacional de Psicanálise

UK

Global

Criado em 1920 pelo Instituto de Psicanálise de Londres; foca pesquisa clínica e teoria; ativo

2

Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse / Revista Internacional de Psicanálise

DE

Germânico

Lançado em 1913 pela Sociedade Psicanalítica Alemã; principal fórum pré-guerra; descontinuado em 1937

14

Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschung / Anuário de Pesquisa Psicanalítica e Psicopatológica

DE

Germânico

Publicação anual iniciada em 1909; voltada a pesquisas psicanalíticas; descontinuada nos anos 1930

2

Journal of Analytical Psychology / Revista de Psicologia Analítica

UK

Anglófono

Fundado em 1955 pela Sociedade Britânica de Psicologia Analítica; centrado em teoria junguiana; ativo

1

Zeitschrift für psychoanalytische Pädagogik / Revista de Pedagogia Psicanalítica

DE

Saxônico

Iniciado em 1992; explora aplicações psicanalíticas na educação; em circulação

1

Zentralblatt für Psychoanalyse / Boletim de Psicanálise

DE

Sanxônico

Criado em 1910; coletânea de resumos e críticas em psicanálise; interrompido em 1937

2

 

Os tipos de artigos:

Categoria

Nº de artigos

Temas Principais

Análises de Casos Clínicos

3

Esquizofrenia; fobia infantil; simbologia animal em criança

Teórico e Metapsicológico

8

Pulsão de destruição; formação do sujeito; complexo de Édipo; moral

Desenvolvimento Infantil e Simbolismo

4

Amor materno; relações familiares; autoerotismo simbólico; linguagem infantil

Relatos de Sonhos e Visões

5

Sonhos menstruais; sonhos com selos; sonhos de estrelas; sonhos paternos

Notas Editoriais e Erratas

3

Correções editoriais; pequenas comunicações

Análises Simbólicas e Culturais

2

Símbolos automotivos; poder masculino

Trechos de Diário

1

Trechos de diário clínico

 

Nos textos, Dra. Spielrein faz contribuições à teoria pulsional; ao estudo das psicoses (tendo trabalhado em hospital psiquiátrico); à sexualidade infantil e ao seu simbolismo; ao desenvolvimento psíquico infantil; ao complexo de Édipo; e às relações familiares (mães e sogras). O simbolismo certamente é tema de interesse de Spielrein, explorado em toda sua produção.


Segundo Carotenuto (4), a história de amor entre Sabina e Carl apareceu como por um milagre. A despeito dessa produção inovadora nos primórdios da psicanálise, ela permaneceu pouco conhecida, silenciada até perto dos anos 1980. Foi uma troca de cartas e obras entre o professor de psicologia analítica em Roma, Corentenuto, e seu colega Carlo Trombetta, na Suíça, que acabou esbarrando em um diálogo com o professor Georges de Mousier, em Genebra, que “miraculosamente” se lembrou dos documentos em Palais Wilson que continham o nome de Sabina Spielrein, referência que estava nos diálogos entre os colegas motivado pelo interesse de Carotenuto. Cromberg (2) afirma que há evidências de que Jung queria que os documentos sobre sua relação com Spielrein ficassem esquecidos. Mas como manter alguém tão contributiva em silêncio?


Rostov, cidade natal de Dra. Spielrein na antiga União Soviética, caiu sob ocupação nazista em 1942. Ela lá residia e trabalhava desde 1923. Spielrein foi uma das milhões de vítimas do Holocausto: executada com suas duas filhas. Não abandonou a cidade por crer que os alemães eram uma nação civilizada (2) — alerta para hoje, quando movimentos extremistas se apresentam como inofensivos.


A impressionante vida e a relação de Sabina com Carl, bem como a intervenção de Freud, renderam uma peça de teatro, baseada em um dos inúmeros livros sobre ela, e dois filmes.


O filme Prendimi l’anima (2002) (5), The Soul Keeper (EN) e Guardião da Alma (PT).


De Roberto Faenza, a ficção conta a história de dois pesquisadores que vão a Moscou estudar a vida de Spielrein. O filme transforma os achados dos pesquisadores em flashbacks que encenam e narram, como uma arqueologia onírica, a história da jovem que, aos cerca de 19 anos, tornou-se paciente de Jung e, depois, sua aluna e colaboradora em intenso envolvimento intelectual e amoroso. Acerca do filme:

—Spielrein, de paciente psiquiátrica, tratada pela psicanálise, passa por uma profunda transformação, estuda medicina, psiquiatria, torna-se psicanalista e dedica-se ao atendimento e educação de crianças.

— Spielrein de fato se tornou médica e psicanalista, e escreveu sobre psicanálise infantil e o simbolismo na vida infantil.

—um retrato marcante do filme é a ambivalência de amor e ódio, o componente libidinal e destrutivo da sexualidade que, aliás, é sua principal publicação, Die Destruktion als Ursache des Werdens (A destruição como origem do devir), eu prefiro a tradução: A Destruição como a origem do vir-a-ser. Este será nosso artigo em foco, na tentativa de resgatar o pensamento das fundadoras esquecidas da psicanálise.

Um Método Perigoso (A Dangerous Method, 2011) (6), de David Cronenberg, é baseado na peça The Talking Cure, de Christopher Hampton. O filme dramatiza a relação do então jovem médico psiquiatra Carl Gustav Jung, que admite como paciente ambulatorial a jovem judia russa de família abastada, Sabina Spielrein, na Clínica do Hospital Burghölzli, em Zurique. Ela sofria de severos sintomas de histeria e tornou-se a primeira paciente de Jung tratada segundo o método freudiano. A relação terapêutica evolui para uma intensa ligação amorosa e intelectual.

O filme enfatiza as tensões que emergiram entre Jung e Freud — Sabina é mencionada por Jung em uma carta. A princípio, Freud observa: “embora penosas, tais experiências são necessárias e difíceis de evitar. É impossível que, sem elas, conheçamos realmente a vida e as coisas com as quais lidamos” (7, p. 335).

O filme também mostra Jung projetando sua autorrecriminação em Freud. Em carta, Jung confessa que esperava de Freud “um pito” (7, p. 337).

Um Método Perigoso também exibe:

·         O papel ambivalente de Spielrein para Jung como paciente, amante e pensadora;

·         As tensões éticas do tratamento psicanalítico inicial;

·         E a complexidade do desejo, da transferência e do poder entre analista e analisando.

Acerca do pioneirismo: a primeira(2) (significante insistente em sua história), a ser tratada por Jung pela psicanálise; mulher a publicar e a defender uma tese de doutorado na faculdade de medicina de Zurique; também a primeira tese de base psicanalítica por uma mulher;  a pensar a pulsão de morte; a utilizar o termo esquizofrenia (e um ano antes de ser postulado por Bleuler em 1911); pioneira em implantar a psicanálise na nova psiquiatria, tendo seu centro a clínica Burghölzli;  em diferenciar o sofrimento feminino e masculino e formas regredidas de feminilidade da psique (o gozo feminino?); a primeira, portanto, a trabalhar com profundidade a questão da feminilidade; a elaborar um trabalho sobre “uma complexa teoria do papel da linguagem e das representações no psiquismo ligando-os fortemente aos destinos pulsionais soberanos” (2), e em contato com o pensamento de Saussure e Jakobson. Ainda, egundo Cromberg, seu trabalho sobre as expressões papai e mamãe estão em uma espécie de vanguarda do Fort-dá de Freud.

A história de seu tratamento pode ser encontrada nos documentos da clínica Burghölzli e em um relatório escrito por Jung a Freud, mas que nunca foi enviado (2). Ela já era aluna de medicina quando sua mãe a levou para tratamento (8 p. 138). Diagnosticada com histeria, "as punições físicas aplicadas pelo pai nas nádegas da paciente, dos quatro aos sete anos de idade, infelizmente haviam se associado à sua consciência sexual prematura e agora altamente desenvolvida" (Jung in: 8 p. 138). Na infância, punições físicas e agressões verbais ocasionavam excitação sexual e fantasias obsessivas com excrementos. O relatório ainda conta que ela havia sido enviada primeiramente ao sanatório, e que o médico de lá se queixava de seu comportamento demoníaco. A despeito do sucesso do tratamento, que permitiu a Spielrein reencontrar sua inteligência e sensibilidade, ela foi tirada dele pela mãe por ter se apaixonado por Jung.

Sobre a história de amor entre Sabina e Carl, chamo a atenção que os fatos se deram no auge do período no qual o movimento psicanalítico discutia questões da ética da psicanálise, e, portanto, das noções de transferência e contratransferência. Os filmes já nos levam a uma estética imaginária fascinante. Mas não quero “passar panos quentes” no assunto, como Freud fez. É fato que, em sua carta a Jung, em junho de 1909, onde Freud, segundo Cremerius (Cremerius in: 8 p. 74–75), usa pela primeira vez o termo contratransferência, no sentido psicanalítico com o qual seria apresentado no congresso de Nuremberg (1910). Falta-me a leitura das cartas entre Spielrein e Freud e a informação sobre o que realmente Freud sabia. Nas cartas de Jung a Freud, o tom é muito obscuro, chegando a transparecer que Jung queria colocar Spielrein no papel de uma indiscreta.

Na interlocução de volta, é nítido o cuidado com que Freud orienta Jung. Do ponto de vista da ética do ato psicanalítico, Jung deixou-se enveredar pelo mais verdadeiro amor dirigido à pessoa errada. E Freud também. Neste momento, amou seu filho Jung mais do que a psicanálise, conforme a minha interpretação. Jung confessou suas expectativas a Freud, buscava um "pito" sobre o assunto como um evidente desejo de contenção, mas Freud disse, metaforicamente, que o envolvimento era "um incidente no laboratório de química" (7), e que essas mulheres encontram muitas maneiras para "nos impressionar".

Deixo ao cinema a tarefa de nos levar à berlinda de conclusões mais profundas sobre essa linda e tensa história de desejo e envolvimento entre o médico e sua paciente em tratamento, sobre os perigos e efeitos positivos ou negativos sobre Sabina e Carl. Todavia, em favor dos dois, Carotenuto (4) vê na relação entre Sabina e Carl as fontes do conceito junguiano sobre a anima e como Spielrein ascendeu ao papel de uma brilhante médica, pesquisadora e psicanalista após seu contato com Jung.

Para além da história controversa... Por que a Dra. Spielrein é uma "verdadeira esquecida"? (Cremerius in: 8 p. 71). Cromberg (2) responde a essa questão em camadas. Uma delas pode ser a associação entre Jung e Spielrein: embora tenha se tornado psicanalista freudiana, sua vasta correspondência teórica com a obra de Jung a torna alvo da tentativa de extirpar o nome deste da produção teórica psicanalítica após sua ruptura com Freud. Conclui-se que fatos históricos e políticos, sua morte precoce executada pelo nazismo, e o fato de não ter deixado uma escola própria na Rússia, colaboraram para seu esquecimento.

O seu percurso na linguagem vem do contato com Jean Piaget, de quem foi analista didata e depois colaboradora (7 p. 334–5). Na perspectiva da linguagem, também colaborou com a escola russa liderada por Vygotsky (2). Essas informações acerca do encontro entre a psicanálise e as escolas estruturalistas e socioculturais, deixaram este pesquisador feliz. Pois, apesar de Lacan abordar o aspecto da linguagem na ordem da estruturação do Sujeito do inconsciente, as dimensões topológicas de seu nó borromeano com os entrelaços do real, simbólico e imaginário contemplam expressões conscientes como o semblante, a imagem do Eu ao outro, o atravessamento do grande Outro pela linguagem. A própria intermediação simbólica de um ao Outro ata, topologicamente, questões da consciência e a economia do inconsciente — que se estrutura como uma linguagem.

Lacan, no princípio de sua obra, partiu de pontos parecidos com os de Sabina: da psicose feminina, onde explorava, sob a influência dadaísta e surrealista, o conceito de simbolização (9). Todavia, progrediu para o estruturalismo linguístico em sua obra posterior (10). As semelhanças entre a obra de Spielrein e o pensamento posterior lacaniano remetem a fontes estruturalistas sobre a linguagem com as quais, sem dúvida, a Dra. Spielrein não teve o tempo de vida necessário para lidar. Todavia, com uma estranha e curiosa semelhança, ela também investiu em elaborações de esquemas topológicos:

ree

Figure 1 Esquema topológico de Spielrein(Spielrein in: ,2)


Não sei se essa aproximação da metapsicologia com a linguística determina um caminho para questões como as apreensões especulares do eu, os esquemas e a lógica das topologias não lineares, ou a importância da intermediação simbólica entre o real e o imaginário. O que sei é que leio isso em Lacan, que anos depois de Spielrein e, aparentemente sem o domínio da teoria deixada por ela, esmerou-se em aprofundamentos que se iniciaram em caminhos semelhantes.

Com pesar no coração por ter de recortar um rico e vasto pensamento de Spielrein, passo a apresentar minha leitura do texto "A destruição como origem do vir-a-ser" por seu caráter originário e antecipatório ao grande salto teórico da dinâmica pulsional.

Die Destruktion als Ursache des Werdens

“A destruição como origem do devir”[werdens, vir-a-ser](1)

O ponto de partida do pensamento de Sabina Spielrein é a perplexidade diante de um problema comum na clínica: a postura subjetiva, frequentemente negativa, que se manifesta contra a pulsão sexual. A despeito do que se espera do prazer, o ato sexual e seus desejos são contraditoriamente acompanhados por afetos de angústia e aversão, sentimentos que, de acordo com a autora, precisam ser superados para que o indivíduo possa alcançar o ato positivo.

Para justificar essa contradição, a psicanalista revisita as hipóteses de outros teóricos da época. Ela menciona a influência da educação, que proíbe o ato sexual, e retoma afirmações que associam sexo e morte, como a de Stekel, que via a morte como um símbolo de decadência moral, ou de Gross, que ligava os produtos sexuais a excrementos. Spielrein, contudo, se alinha mais a Bleuler, que via a rejeição como um negativo necessário que acompanha o positivo, e a Freud, que explicava a angústia como um recalque e resistência a desejos. No entanto, é com Jung que ela estabelece uma correlação mais direta, pois ele afirmava que a libido tem duas faces: uma força que embeleza e outra que destrói. Jung argumenta que a nova geração suplanta a antiga, e isso justifica o medo desconhecido presente no ato erótico. Em suas próprias observações clínicas, Spielrein nota que em moças, a angústia do recalque, na primeira noção da possibilidade de realização de um desejo sexual, se manifesta com o sentimento de que "a pessoa sente o inimigo dentro de si".

Para aprofundar essa tese, Spielrein busca a correspondência entre a afetividade e a biologia animal da procriação. Ela sustenta que é improvável que o indivíduo não tenha, ao menos uma suspeita, traduzida em afetos, da existência dos processos de destruição e reconstrução em seu próprio organismo. Afinal, a biologia da procriação demonstra que a criação exige aniquilação: as células feminina e masculina se destituem para formar a nova célula, e na natureza, alguns insetos morrem no ato de procriar. Portanto, a natureza tem essa junção entre procriação e aniquilação, e essa aniquilação, como a expulsão de excrementos, associa-se à emissão dos produtos sexuais. Nesse sentido, ela sugere que os sentimentos de angústia e repulsa não seriam patológicos, mas um correspondente afetivo normal da componente destrutiva do instinto sexual.

Em suas considerações psicológicas-individuais, a psicanalista explora como a psique representa o eu em diferentes contextos, como na esquizofrenia, nos sonhos e na histeria. Ela conclui, de maneira impactante, que "o indivíduo é um divíduo". Para ela, o eu não é uma unidade indivisível, mas uma somatória de elementos em constante transformação. Essa ideia, defendida pelo filósofo Mach, encontra eco em sua prática clínica. Ela observa que na demência precoce, o paciente sente o poder dos complexos individuais divididos do eu como "seres inimigos capazes de viver". O delírio, portanto, serviria como uma defesa contra a angústia, naturalizando essa dissolução.

O âmago da nossa psique, o qual ela se refere como “In unserer Tiefe” (nossas profundezas) ou como "nosso oceano", se coloca contraditoriamente na relação prazer/desprazer. Essa metáfora do oceano, que se assemelha ao "sentimento oceânico" discutido por Freud e Romain Rolland, leva a um eu tão regredido e dissolvido que se pode sentir prazer na dor. É aqui que podemos traçar uma conexão com o pensamento de Lacan e sua noção de plus-de-jouir, e do gozo para além do princípio do prazer, um conceito que expressa o limite do prazer e a pulsão que não se liga apenas ao prazer do eu, mas a uma instância que o transcende. A psique, no sonho, dilui o eu pessoal em uma coleção características para compor um tipo impessoal — o eu identifica-se no impessoal. As identificações nas infâncias podem ser tomadas pela admiração, por exemplo, como uma criança que toma uma bruxa para identificar sua mãe. Não é a mãe que está na bruxa, a criança se identifica com a bruxa que, impessoalmente, representa a mãe.

Spielrein também fala de uma Artpsyche (psique da espécie) que visa à formação de culturas inteiras, uma dimensão além do indivíduo. Essa ideia se aproxima a de Lacan no tocante ao desdobramento do inconsciente sobre a realidade sexual da humanidade e o papel da linguagem articulando essa realidade, o inconsciente e a libido. A linguagem, como instância alienante, impõe a perda de um gozo pleno imaginário, mas permite a constituição do sujeito. A dissolução do eu no outro, então, não seria apenas uma ameaça, mas um reencontro com o próprio eu que o dilui no outro, o que Sabina demonstra nas relações amorosas e na arte. Em um fato para atentarmos, atos sublimes de criação e procriação partem de uma premissa de identificação e transformação, um retorno a um aspecto primitivo do eu que suporta a ele novas formações possíveis.

A autora finaliza sua exposição com uma lista de representações de duplo sentido que atestam a união de vida e morte.

Stekel: "cavar a sepultura" tem uma figura simbólica de perfurar, assim como o ato de conceber.

Freud: O ataúde simboliza o caixão e o ventre da mãe, e a própria mãe terra da qual viemos e à qual voltaremos.

Na mitologia e na clínica: A Árvore da Vida, em seu papel duplo, dá vida aos doentes e morte aos saudáveis, sendo o ato sexual associado a essa morte que é o caminho para a nova vida. O "me mate de amor" de Shakespeare e os delírios da Sra. M., que associava o morrer a "unir-se com Cristo", são exemplos dessa ambivalência.

A circuncisão, como símbolo da castração, representa o corte como um pagamento sacrificial para a continuação da vida, reafirmando que a destruição é a condição do devir.

Conclui-se que o texto de Spielrein é uma exposição profunda e antecipatória de uma dinâmica pulsional ambivalente, onde o eu se dissolve em um movimento de criação que o transcende e o renova.

 

Considerações finais:

1         Alguns conceitos-chave:

  • Destruição = perda narcísica, dissolução do eu individual, mas também uma junção com a outra célula, com o outro indivíduo, com o eu primitivo dissoluta, e o eu arcaico cultural;

  • Vir-a-ser = surgimento de algo novo, transformação subjetiva, (re)nascimento, que renova também a psique em suas elevações, viar-a-ser é a transformação em um estado de suspensão temporária para se adentrar ao território simbólico a partir de um reencontro identificatório transformador.

  • A união sexual é ambivalente: envolve prazer, mas também angústia, porque o eu se dissolve ali.

  • Ela fala em uma “realidade sexual da espécie” — a pulsão destrutiva não visa apenas o prazer do indivíduo, mas atua a serviço da reprodução e continuidade da espécie.


2         Articulação com Freud

Antes de 1920:

•             Freud falava apenas em pulsões de autoconservação e pulsões sexuais.

•             Spielrein, em 1912, vai além: mostra que a sexualidade implica destruição, e que o sujeito não visa só prazer, mas uma espécie de desintegração produtiva.

Depois de 1920:

•             Freud introduz a pulsão de morte (Todestrieb) em Além do Princípio do Prazer.

•             Ele reconhece que o sujeito tende a um estado anterior à vida, ao inorgânico, mas esse movimento se articula com Eros, pulsão de vida.

•             Muitos comentadores, inclusive Lacan, notaram que Freud retoma ideias antecipadas por Spielrein — embora nunca a tenha citado nesse contexto.


3 Spielrein antecipa de maneira original?

  1. A função produtiva da destruição — algo que não é patológico, mas estrutural e necessário para a renovação individual, coletiva, e subjetiva;

  2. A ambivalência afetiva da sexualidade, que mistura prazer e ameaça ao eu;

  3. A ideia de que o sujeito está em jogo não só como indivíduo, mas como expressão da espécie, abrindo caminho para pensar a pulsão além do ego.


4 O que Freud faz que Spielrein não faz?

  1. Formaliza a pulsão de morte como conceito estrutural da metapsicologia;

  2. Articula a pulsão de morte ao funcionamento econômico do aparelho psíquico;

  3. Aprofunda a relação entre trauma, repetição e temporalidade psíquica;


  4. Liga essa nova concepção pulsional à estrutura do masoquismo e da repetição neurótica.

5. Leitura de Lacan

Não me recordo de comentários de Lacan ao texto de Spielrein, mas sua teoria da pulsão retoma linhas muito próximas, especialmente:


Lacan:

  • A pulsão não visa o objeto, mas dá voltas ao redor de uma perda que é uma falta constituinte: falta-a-ser na ordem do sujeito do inconsciente, o sujeito desejante (o objeto a, o furo).

  • O sujeito só se constitui na perda, na castração simbólica, na dissolução de sua consistência imaginária.

  • No Seminário 11, Lacan dirá:

“A pulsão não visa a vida, visa o campo do gozo, que é sempre um pouco do lado da morte.”

Pontos de eco com Spielrein:

Spielrein (1912)

Lacan (anos 1950–70)

Destruição do eu no amor sexual

Castração simbólica / dissolução imaginária

Ambivalência da pulsão erótica

Gozo como excesso, além do princípio do prazer

Vir-a-ser exige dissolução anterior

O sujeito só advém pela perda e furo estrutural

Pulsão e espécie: além do indivíduo

Real do gozo: inassimilável pela linguagem

 

  

Referências

 

[1]          SPIELREIN, S. A destruição como origem do devir. Tradução: Renata Dias Mundt. Porto Alegre, RS: Artes & Ecos, 2021.

[2]          CROMBERG, R. U.; FERRAZ, F. Sabina Spielrein: Uma pioneira da psicanálise (Obras Completas, volume 1). 2. ed. São Paulo, SP: Editora Edgard Blucher, 2022.

[3]          CROMBERG, R. U.; FERRAZ, F. Sabina Spielrein: Uma pioneira da psicanálise (Obras Completas, volume 2). São Paulo, SP: Editora Edgard Blucher, 2022.

[4]          CAROTENUTO, A.; CAROTENUTO, A. A secret symmetry: Sabrina Spielrein between Jung and Freud ; [the untold story of the woman who changed the early history of psychoanalysis]. New York: Pantheon Books, 1984.

[5]          Prendimi l’anima. , 10 jun. 2025. (Nota técnica).

[6]          A Dangerous Method. Recorded Picture Company (RPC), Lago Film, Prospero Pictures, , 30 mar. 2012.

[7]          MCGUIRE, W. Cartas de Freud e Jung. [s.l.] Editora Vozes, 2023.

[8]          COVINGTON, C.; WHARTON, B. (EDS.). Sabina Spielrein: forgotten pioneer of psychoanalysis. Hove [England] ; New York: Brunner-Routledge, 2003.

[9]          LACAN, J. Da Psicose Paranoica em suas Relações com a Personalidade. [s.l.] Forense Universitária, 2010.

[10]        LACAN, J. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (1953). Em: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. p. 238–324.

 

 

 

 (1) pep-web.org/ chave de busca: search?facets=%5B%7B%22id%22%3A%22art_lang%22%2C%22value%22%3A%22de%22%7D%5D&searchTerms=%5B%7B%22type%22%3A%22author%22%2C%22term%22%3A%22spielrein%22%7D%5D

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