Lavoura Arcaica
Professora Doutora em Psicologia Clínica USP
Psicanalista - Associação Campinense de Psicanálise
Artigo sobre o filme do mesmo nome, após reunião do grupo Cinema e Psicanálise, em Campinas.
Numa vasta extensão de terra a ser trabalhada, tendo como parâmetro o modelo de ancestrais distantes, que ficaram no Líbano, nossos olhos, no filme “Lavoura Arcaica” são convocados a testemunharem uma tragédia anunciada: uma passagem ao ato libidinoso entre um irmão e sua irmã, onde a morte será elevada ao status de corte, de limite, de fim!
O que mais nos inquieta, no desenrolar desta estória, é: por que um limite não é traçado, por que a Lei de um pai autoritário não se escreveu, traçando uma linha que indicasse o impossível, um limite a não ser atravessado? Estamos falando de uma voz trovão, uma voz paterna com a potência de traçar os limites da proibição do incesto entre irmãos!
O diretor do filme “Lavoura Arcaica” nos apresenta cenas do Líbano e presenciamos aquelas mulheres marcadas por um recato: adolescentes já usam roupas em que os rostos, os cabelos, bem como os corpos são recobertos e casamentos são arranjados entre as famílias. Nessa cultura, o desejo e a sedução não ocupam lugares importantes, pelo menos não de maneira exposta aos olhares públicos! Num salto geográfico - do Líbano para o Brasil -, assistimos à trajetória de uma estória recalcada, cujo desejo emergirá, aqui, sob a forma de uma passagem ao ato incestuosa...
Retomemos esta família que se reunia em torno da mesa, sempre com alimentos preparados pela mãe. Este era o seu lugar: preparar os alimentos para a família. O pai, na cabeceira da mesa, anunciava um dito do dia e o início do ritual da alimentação... Cada membro da família sempre no mesmo lugar...
Num recorte, jogo luz numa cena em que a mãe acorda André, ainda menino, de maneira muita afetiva. Ela acordava-o dizendo “ya habib... ya oyouni!” “Meu amor!”; “Meus olhos!”, desde cedo teve o olhar libidinizado pela mãe e isto não será sem consequências em sua história de vida... André cresceu marcado por buscar sentir a terra, as folhas no chão, como se fosse um clamor para tentar fazer parte desta terra-natureza, um grito de continuar vendo e vivendo sem interdições, à maneira dos animais da fazenda... “Ya oyoni!” Olhos, libidinizados pela mãe, que queriam ver, queriam ver o corpo da irmã, sem interdições, queriam ver mais... Mais ainda! E o ato do incesto era uma tragédia anunciada! Somente a distância podia separar os corpos, somente a distância podia impedir uma passagem ao ato incestuosa!
Essa distância necessária foi construída por André, após uma passagem ao ato incestuosa, já que a interdição simbólica mancava... André, após atravessar as leis familiares que ditam a impossibilidade do incesto entre irmãos, “toma o rumo da estrada” e isola-se num quartinho onde o contato com o mundo se dava pelos horários sincronizados do apito do trem, apito que indicava a realização possível da fantasia de estar novamente perto de sua “Ana”. No refúgio, distante da fazenda, no seu quartinho, bebia e esperava o horário do trem chegar, e nos parecia, pelo som de sua chegada, que o trem passava ao lado de seu quarto... O ato masturbatório ocorria com o anúncio de sua chegada e tinha seu ápice de prazer quando ele passava – ou seja, quando ela, sua irmã-trem, viva em sua fantasia, teria chegado! Mas o trem ia embora e, no seu refúgio de ermitão, aguardava o próximo trem-irmã, trem que passaria e iria embora, numa reiterada certeza de que a distância dos corpos estava assegurada, de que a realização do desejo edípico estava interditada!
Numa reviravolta dos caminhos traçados por este autoexílio imposto, certo dia, seu irmão Pedro vai encontrá-lo, com a missão, delegada pela família, de trazê-lo de volta para a casa dos pais, e, portanto, para o reencontro com sua irmã Ana!
Tragédia anunciada!
Só a distância geográfica podia impedir uma passagem ao ato incestuoso!
Retomemos a fala materna: “ya oyoni... Meus olhos... Você é minha luz, você ocupa o importante lugar de ser meus olhos!” É numa celebração nas terras da fazenda, onde havia música e dança, que André retorna e, ao se aproximar do lugar onde todos dançavam, reconhece nos adornos do corpo de Ana os objetos guardados em sua caixinha de lembranças. Essa caixinha, que, junto com Mário Naves , elevaremos ao estatuto de ser uma caixa de “Pandora”, numa alusão à caixa de Pandora, viva na nossa memória através dos relatos da mitologia greco-romana, só poderia conduzir ao pior! Recordemos que a caixa de Pandora fora aberta e que o desfecho ocorrera sob a forma de um fim trágico! O principal traço de Pandora seria a curiosidade. Diz a lenda mitológica que Prometeu roubara o fogo do monte Olimpo e levara-o ao mundo humano, contrariando a vontade de Zeus. Pandora fora criada com “o defeito da curiosidade” e estava fadada a, um dia, abrir a caixa e libertar o mal ao mundo humano, castigando a humanidade pelo fogo que haviam recebido contra a vontade de Zeus.
Caixa de Pandora e a caixinha que André traz em sua bagagem, no seu retorno à casa paterna, caixinha esta que continha apetrechos-recordações de sua viagem para o mais-além das terras paternas: qual seria a similaridade entre essas duas caixas? Sublinhemos pontos de semelhança: curiosidade e o mal devastando a humanidade; curiosidade e sexualidade sem interditos, levando a um fim trágico.
O retorno de André à fazenda da família ocorre num momento em que uma festividade estava acontecendo nas terras da “Lavoura Arcaica”. Havia música, convidados, dança... Ele vê sua irmã, Ana, dançando com movimentos extremamente sensuais. Ela usava adornos - fitas e colares -, “roubados” da sua caixinha. Ficamos sabendo que ele guardava ali pequenas lembranças recebidas das prostitutas, com as quais tinha se relacionado durante o intervalo de tempo em que se afastara da sua casa. Ela, sua irmã, abrira o “jarro de Pandora”- sua caixinha de lembranças-, e tirara de lá os badulaques-presentes das prostitutas que haviam passado por sua vida... Ela adorna seu corpo com os objetos roubados, insinua-se e dança para seu irmão, num convite aberto para um jogo sexual. Ela despira-se da vergonha de dizer dos seus desejos, ela transpõe a lei convocando-o para um jogo sensual de maneira aberta, diante de toda a comunidade.
Num paralelo à estória mitológica, a abertura dessa caixa precipitou uma tragédia, pois todo o mal se espalhara naquelas terras! Ana, irmã de Pedro, convocava-o a uma dança sensual! Não eram mais irmãos, mas sim uma mulher desejando seu amante!
A morte veio para inscrever o limite, o impossível de uma relação sexual incestuosa. Uma bala certeira, na sua presença trágica, inscreve o “The End” nestas terras da “Lavoura Arcaica”.
Walkiria Helena Grant
Psicanalista
Fone: 19 – 3255-6604
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